Publicida — Biografia em camadas, 1
Sem aulas de redação, fiz minha própria apostila, e assim parei na propaganda.
Em 1998 eu não sabia que rumos tomaria no colegial. Tinha as opções de fazer o básico ou os técnicos profissionalizantes. Gostava de geometria e era criativo nos desenhos, por isso achei que deveria ir para o técnico em Edificações mirando dali a três anos prestar Arquitetura no vestibular. Foi o que fiz, mas descobri que o curso tinha nível de exigência menor e não me prepararia devidamente para a Fuvest. Concluí o primeiro ano, mas me transferi para o ensino médio básico. Essa mudança foi um dos eventos mais determinantes para meu caminho profissional, e vou dizer como.
Na transição eu não perdi o ano letivo; havia alguma equivalência entre o primeiro ano do Básico e o primeiro do Técnico. Faltariam apenas duas matérias, que eu reporia com aulas complementares, e o resto dava para acompanhar. Uma das matérias foi Redação.
Eu conhecia a gramática e a sintaxe do Português, mas não dominava a arte de traduzir argumentos em frases concatenadas. Eram altas as expectativas que eu mesmo tinha com a reposição, dado o peso que a redação tinha na composição da nota da Fuvest.
Mas as dezesseis aulas que fiz aos sábados de manhã não foram o bastante para eu me sentir seguro, pois a carga horária foi mal distribuída. Aprendemos com detalhes as técnicas narrativas e as descritivas, porém, as mais importantes ─ que eram as dissertativas ─ foram espremidas em dois encontros já em clima de férias.
Burocraticamente eu estava certificado; mas, na prática, eu tinha plena consciência das carências; estava inapto, esta era a verdade. O carimbo da chancela boletinesca tinha zero serventia ante a perspectiva de uma prova exigente e competitiva. O que fazer?
Curiosidades da vida e graças divinas por ter colocado as pessoas certas no caminho, uma certa faceta da personalidade de meu pai acabou calhando para minha situação. Após o divórcio ele passou a cultivar o hábito materialista de colecionar coisas como carrinhos de ferro, discos de rock, latas de cerveja importadas, canais de televisão a cabo e almanaques vendidos em fascículos em bancas de jornal.
Almanaque em fascículos era como comprar um livro aos poucos, um capítulo por semana, pois eles eram vendidos aos domingos junto com a edição do Estadão direto na banca de jornal, cada semana um capítulo diferente. A capa vinha grátis, no último domingo do período promocional, junto aos parafusos para fixar os fascículos e formar o almanaque enfim completo e bonitão. Meu pai tinha vários desses, de temas tão variados quanto biologia, matemática, modelos aéreos e mundo antigo. Um deles era dedicado a redação dissertativa.
Peguei-o emprestado e fiz daquele livrão, cheio de gráficos e esquemas, o meu principal guia de estudos. Do sumário às considerações finais, resumi vinte e tantos capítulos. Ao longo de três meses fiz todos exercícios propostos e, ao final, passando a limpo meus resumos, escrevi minha própria apostila, à mão, em folhas que minha mãe trazia do trabalho às resmas de sulfite descartados das impressoras matriciais.
Na época eu já tinha boas habilidades de sintaxe; geralmente me destacava entre os melhores da escola na matéria (um abraço para minhas professoras de Português, Dete e Cida França). Mas aquelas eram habilidades primas, não vinculadas. Uma coisa é decifrar, outra é cifrar, assim como uma coisa é saber ler um conto, outra é saber escrever um conto. Após eu ter mergulhado nos fascículos de redação dissertativa do Estadão, a fusão entre a boa gramática e uma nova retórica enfim começou a dar seus frutos.
Minha escrita dissertativa chegou num nível “de excelência” (para um adolescente, é claro) que me deixou todinho enjoado. No meu vestibular já como treineiro, minha nota de redação já foi bem alta. Escrever bem, e de forma virtuosa, acabou sendo um fator motivador.
No terceiro ano colegial, em 2001, entrei ainda com dúvidas sobre o que prestaria no vestibular. Economia? Engenharia? Arquitetura? Aquele breve e inédito glamour de sucesso verbal começou a, ironicamente, dissertar com meus botões sobre o melhor prognóstico de carreira: “em qual delas teria melhor uso aquele talento descoberto?” Assoprara, de fato, as fornalhas do auto-pavoneio; e dentre aquelas opções preliminares levantou-se um horizonte até então apenas zoeiro. Daquele novo gosto por escrever, somado à alta confiança no quesito, surgia um páreo favorito: prestar Propaganda e Marketing no vestibular.
O fato de alguém se achar em algum assunto, significa que se achou em vocação?
Uma questão borrada que, na mente do adolescente, pode significar sinonímia. Especialmente porque alcancei a nota máxima de redação na edição seguinte do Enem. Aquele fato fez o diretor Oswaldo me chamar à sua sala para dar-me pessoalmente os parabéns, eu entre os mil alunos que a FITO ensinava por período. Eu me sentia engomado, o novo osasquense-rico, já pronto para entrar num corredor de uma empresa multinacional vestindo uma camisa colorida, uma calça curiosa, requisitado por muitos para uma solução que rimasse criativa com definitiva para os problemas de comunicação da vez, e eu, resolvendo-o em instantes de pura magia, me despediria dos auxiliados com uma piscadinha marota de gênio generoso que ruma ao escritório que eu mesmo teria mobiliado com minhas noções inatas de arquitetura.
Aquela nota me ajudou de fato a passar na USP, mas não foi lá que me matriculei. Em janeiro, faculdades particulares abriram seus vestibulares, entre elas a ESPM, que na época era considerada com folga a melhor da América do Sul em Propaganda e Marketing. Meu pai me convenceu a tentar. Mas eu, sabendo da mensalidade muito acima da realidade financeira da minha família, fiz a prova em ritmo de amistoso.
Na prova de alternativas eu não tive grande desempenho. Mas o tema da redação falava sobre Ronaldo Nazário, marketing esportivo e alguma coisa de imagem pública. De craque pra craque, driblei a moleza, matei o tema no peito como se o dominasse, mandei a nota no ângulo e botei pra dentro da faculdade o novo futuro publicitário: passei.
Ou, pelo menos, tinha ganhado direito de matrícula. Eu não achava que eu realmente faria aquela faculdade, pois a mensalidade era na época cinco salários mínimos, fora os livros, o transporte público, a alimentação esporádica. Mas meu pai também tinha um lema que ele adotara desde o divórcio: compre menos, compre bem. Com essa filosofia ele sentou-se com minha mãe para negociar um reajuste dos valores da pensão. Desconheço o novo acordo, mas, dado que a relação pós-divórcio era boa, não me pareceu que houvera discordância. Era uma boa causa, pensavam. Durante os anos seguintes nem um nem outro trocaram de carro ou fizeram grandes viagens, e eu sabia que era sacrifício pelo meu futuro.
Foi assim que eu cheguei na redação publicitária.
Do primeiro emprego à desilusão na área
Dá uma outra história falar das relações que tive na ESPM e um dia contarei a respeito de como lidei com as diferenças sociais, mas aqui vou focar na parte literablicitária.
Durante a ESPM eu tive contato com grandes professores de diversas áreas da abordagem à escrita. Diferente das matérias específicas como Marketing e Macroeconomia, que tinham profissionais específicos para nos passar conhecimento, havia uma série de matérias “abertas” de comunicação escrita e criativa, e os mentores tinham formas abrangentes de abordagem.
O poeta Mário Chamie, de Comunicação Comparada, avaliou meus primeiros poemas, e também nos deu um exercício que levei para a vida: escrever chamadas com a síntese de anúncios classificados. O Heraldo Bighetti, redator publicitário clássico, nos obrigava a escrever cem títulos para um mesmo anúncio, para então riscar 97 deles e depois pedir mais cem que desdobrassem aqueles que tinham sobrevivido na lista. Uma certa professorinha, cujo nome não lembro, nos dava exercícios de escrita toda semana, de anúncios de rádio a cartas de discurso público, de receitas de bolo criativas a paródias de marchinhas de carnaval. Os professores de Psicologia e Semiótica, que nos ensinavam a ler simbologia por meio do cinema europeu (desconhecido por mim até então), deixavam nossa criatividade voar nas análises dos filmes. Até mesmo em trabalhos escritos de matérias mais quadradas, como relatórios de Estatística ou um resumo de palestra promovida pela professora de Mídia, eu agarrava brechas criativas absolutamente desnecessárias e transformava o parágrafo em comentário inteligentsexy apenas pelo exercício masturbatório em si.
Sem falar na literatura. Com três a quatro horas de ônibus todos os dias, pude conhecer bastante dos autores que outrora eu só lia pela obrigação vestibular. A sessão de romances brasileiros e estrangeiros era a que eu mais visitava na biblioteca. E, para quem é da escrita, ler bons livros, bons poemas ou boas frases faz você se sentir capaz de escrever àquela altura. É um tipo de soberba involuntária, ou talvez uma festa de confraternização sináptica que acontece em nosso cérebro. Por isso criei um blog para publicar textos próprios.
Também percebi que o tom e a concatenação de frases eram deliciosamente influenciados pela obra que estava lendo na vez. Uma distopia de George Orwell, um fosso moral de Dostoiévsky, um relatório de Pantaleão sobre suas visitadoras, o pornosianismo de um Olavo Bilac erótico ─ eu copiava até o estilo ou estrutura dos slogans mais inteligentes que encontrava por aí. A percepção, às vezes exagerada, às vezes real, de que você é capaz de escrever como tal autor, me fez perceber que havia ali naquelas minhas frases publicadas alguns versos bons e, naqueles versos, a versão de mim que até então eu desconhecia: um poeta, um artista. Eu realmente comecei a gostar de olhar para uma frase por mim escrita e enxergar nela alguma beleza, embora não o mais belo possível; alguma verdade, embora não a mais honesta possível; e alguma coisa real que eu só tinha contato não antes, no mundo das ideias, nem depois, na poltrona da contemplação, mas durante, no escrever em si, que se me revelava no ato em si. Escrever era descobrir. Da mesma forma que se diz que só se descobre o amor amando, só se descobre o porquê de escrever escrevendo.
Que verdades e belezas eram aquelas? Aquele blog era onde eu depositava minhas frustrações sociais, em especial as amorosas, ou a inflada rebeldia tardia “contra o sistema”. O site está lá até hoje, com poemas, crônicas, esboços, textos satíricos; e seu nome alavalava.blogspot.com já sugere que, desde aquela época, eu tinha certo pendor, digamos, aos trocadilhos rebuscados. Se eu era um desajeitado no flerte, eu tinha a manha do verso. Embora não fosse o objetivo daquela página marginal, com aqueles vôornáculos consegui contornar minha timidez e encantar algumas raparigas ─ quase não tão poucas, mas o bastante para me preencherem de romantismo ao modo lírico. O lado poeta estava, na fibra mole da alma, mais musculoso que o lado publicitário.
Não por acaso, meu primeiro trabalho não foi em uma grande super agência publicitária da Vila Madalena, mas numa empresa do ramo varejista sediada em um galpão logístico na Barra Funda, o Submarino. Publicidade em varejo não tem o mesmo glamour, mas para mim foi o melhor local para começar a trabalhar. Era uma empresa para a qual eu escrevia todos os dias sobre todo tipo de produto, o que me ajudou a manter a criatividade aflorada, por mais que as ofertas repetissem ao longo dos meses. As experiências daquela fase são tantas que dariam um livro de anedotas dedicado.
Se o ramo do varejo em si não tem o status de uma agência clássica de publicidade, que era o grande barato de um redator na época, por outro lado eu naturalmente não era muito à vontade com o clima elitizado, erotizado e workaholizado das agências. Por bloqueio emocional, timidez ou incompatibilidade social, acabei nunca buscando de fato uma posição maior e mais bem paga, e acabei por fim cravando uma carreira no patinho feio da área.
Esse patinho me levou após três anos a um segundo trabalho e, sete meses depois, a um terceiro. Ambos envolviam varejo de forma direta; escrevi para um especialista em trademarketing, e depois entrei para uma agência relativamente nova que atendia a loja brasileira de itens esportivos que mais crescia naquele ano (fui fazer a entrevista de emprego vestindo uma camisa velha do Real Bétis, um time espanhol de futebol de segunda categoria, sem saber que a vaga exigia ser fanático por esportes.)
A minha experiência lá não foi ruim, porém me trouxe duas frustrações profissionais. Uma era a limitação dos textos, pois toda semana era o mesmo tênis anunciado. Não exigia muito do que eu tinha pra dar. Sem falar do nível, digamos, técnico, dos clientes que aprovavam meus textos, quase analfabetos funcionais. Ter meu texto avaliado por um cliente (dono, é verdade) que escrevia osso com “Ç” (o que também é verdade), era algo estarrecedor para aquele meu eu que ainda tinha o egozinho colegial chiando às escondidas no peito, e que não encarou os ocorridos como oportunidades de elevar a humildade ao nível do cosmos de um cavaleiro de ouro do zodíaco.
A outra frustração foi o estilo de vida para o qual a carreira apontava. Não condizia com o que eu almejava. A área de criação ainda hoje é famosa por ter hora para entrar, mas não para sair. Era comum a cultura de pizza e cerveja após dez da noite, e sabe-se lá mais o quê — ou pelo menos era o que ouvia dos garbosos colegas de posição em outras agências. Onde eu trabalhava não apresentava tais sinais de perigo, mas um dia minha agenda gerou murmúrio. Eu não tinha carro e morava em Osasco; para meus colegas, isso era praticamente uma fantasia distante, e eram totalmente alheios à importância de pegar o ônibus na hora certa (também por desconhecerem os impactos de um minuto atrasado na baldeação). Eu costumava sair no horário, sem desejar hora extra. Porém o profissionalismo daqueles que atendiam a conta não era das mais pontuais, o que fazia com que o fim do dia fosse sempre cheio de trabalho de última hora ─ só mais uma “chamadinha”, era o que pediam enquanto eu via, da janela do escritório, meu ônibus se aproximando. Começou a pegar mal que eu saísse no horário. Pior. Começou a pegar mal o motivo pelo qual eu não aceitava ficar mais cinco minutinhos.
Exatamente o quê estava disputando atenção com minha carreira? O que de tão importante estava acontecendo para que eu não pudesse esticar o expediente, como todos faziam generosa e desinteressadamente? O que causava tanta pressa para me despedir da geral no Itaim Bibi, fora o bibi vuvuzélico que se sobrepunha em mil camadas a cada minuto decorrido de tráfego na avenida Faria Lima?
Resposta: uma paixão.
É com muito drama, charme e exagero invulgar que a revelo. Eu digo que estava apaixonado, e digo que minha amante, ou namorada, tinha tudo para ser minha futura esposa. Eu não ousava chegar atrasado um minuto sequer aos nossos encontros, porque poderia passar a impressão que havia, para mim, alguma coisa que fazia meu coração fazer bater mais forte do que batia para ela; ou que eu estivesse “de caso” com a rolha de Sísifo chamada bagunça alheia, em vez de envolvido nos lençóis surrealisticamente ordenados da donzela; ou que eu tivesse me rendido ao materialismo que já no blog eu tanto atacava como romântico idealista, e pretendido horas extras de grana a custa de horas subtraídas de prazeres que eu tinha até nas noites mais doídas dentro dessa amada. Eu passava o dia aguardando aquele abraço, aqueles suores, aqueles nossos diálogos; e nas horas vagas sem ela eu buscava sempre me aprimorar para o próximo cara a cara.
O nome da amante? Arte Cênica. Ou, simplesmente, o teatro. (continua aqui)