Ator é a vovozinha — Biografia em camadas, 2
Marca de pão de queijo desperta instinto criativo ao teatro em pleno TCC.
Três de dezembro de 2002, uma terça-feira, onze da noite.
Meu grupo tinha acabado de apresentar a versão final do TCC ao orientador. O projeto de conclusão de curso dura o quarto ano inteiro da graduação, e em especial aquele trabalho tinha sido muito mais sofrido que o dos colegas. A empresa escolhida, Casa do Pão de Queijo, tinha problemas de comunicação interna e, mesmo sem querer, acabaram nos prejudicando mais de uma vez, nos obrigando a refazer análises e conclusões já do decorrer de metade do ano. Apesar dos vários trupicos, o trabalho escrito estava um primor, incluindo seu projeto gráfico e a aprovação em pessoa do presidente da companhia, que afinal endossou o que estava correto e desmentiu alguns equívocos que encontramos ao longo da investigação. Éramos cinco futuros publicitários ansiosos pelos últimos comentários do mestre.
“O trabalho está excelente. Na verdade o trabalho todo está absolutamente correto. O único problema dele é estar correto demais” ─ e então Ismael, o orientador, olhou pra mim com seus óculos de armação grossa e criativa.
Basicamente o roteiro de nosso powerpoint era começar pelo histórico da empresa, depois fazer uma análise macro e microeconômica de mercado; dali seguia para os concorrentes, para então levantarmos os problemas de comunicação da marca; por fim, mostrávamos as soluções propostas específicas para aqueles problemas detectados. A minha parte era esta última.
“Vocês têm nas mãos uma marca querida, simpática. Eles têm uma vovozinha no logotipo! É comida, é matar a fominha na tardezinha, é coisa de Minas. As pessoas vão esperar um agradinho. A sua parte, Hans,” ─ ele me chamava de Hans ─ “é a criativa, a mais aguardada, é o motivo dos alunos do terceiro ano irem ver vocês.”
O meu grupo tinha mais quatro pessoas: um bom em vendas, outra em planejamento de marketing, e duas boas de administração.
“Mas está muito quadradinha, certinha. Um branco que te bate, e pronto, vocês perdem o finale. Não pode ser uma apresentação que termina sem sorriso, sem afeto, sem um teatrinho.”
Ele deu uma pausa dramática.
Aguardei uma dica.
A dica não veio.
Ele se levantou e disse, com um sorriso meio pai, meio sádico: “Boa sorte, e até quinta.”
A apresentação era dali a menos de 48 horas. Eu teria que recriar a forma de contar o fim da história, sendo no grupo o único que de fato era criativo-raiz.
A Dani riu da minha cara, a Liana olhou para a Thais com olhar preocupada por ter que dar liberdade aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo ao mais esquisitão do grupo, e o Gregor ofereceu ajuda, embora não poderia fazer muito tendo que trabalhar das nove às nove no dia seguinte. Eu estava só, mas, para aquele problema, talvez fosse melhor assim. Enquanto voltava para casa mandei um SMS ao meu chefe no Submarino, o Hico, sobre a situação. Ele prontamente respondeu que eu deveria faltar na quarta e na quinta para focar na conclusão de curso. Abençoados sejam os bons chefes.
Mas o que fazer?
Sem recursos, eu não conseguia pensar em outra alternativa a não ser literalmente contar uma história encenada. Mas tinha que ser em cinco minutos, e quem fala comigo no Whatsapp por áudios sabe que síntese oral não é meu forte. Passei a quarta de manhã rascunhando possibilidades de como seria a forma da coisa toda. Coloquei duas ou três alternativas em debate comigo mesmo e pausei quando a Maria me chamou para o almoço pela terceira vez.
Venceu a seguinte ideia.
Casa do Pão de Queijo tem a vovozinha no logo. Eu seria a vovozinha.
Qual era o problema que encontramos na marca, em nossas pesquisas? Não era com o consumidor. Era com os franqueados da rede. O maior xabú de comunicação era na comunicação interna do business, ou seja, com os donos das lanchonetes e quiosques que faziam parte da rede Casa do Pão de Queijo espalhada pelo país.
Talvez então eu poderia falar desses franqueados como sendo netinhos da vovozinha.
Mas falar com quem? A Nonna não era gagá para resmungar com suas cortinas.
Se os netos eram as lojas, talvez a prosa poderia se dar com um ajudante de marketing?
Ou quem sabe um anjo da guarda?
Sim, anjo da guarda. Vovozinhas brasileiras costumam ser religiosas, católicas. O público irá fazer a associação.
Eu também seria esse papel, de anjo, além da própria velha.
Em resumo, a minha nova parte da apresentação seria uma cena de um ator desempenhando as duas partes de um diálogo entre uma vovó ressentida e seu anjo da guarda a respeito da má comunicação que ela tinha com os netos rebeldes dela.
À tarde escrevi o texto, fiz e refiz, falei em voz alta marcando o tempo. À noite o memorizei. Inventei uma voz “de vó” e treinei a troca de personas.
Mas estava meio tosco além da conta. Não haveria figurino, nem luzes, nem efeitos especiais; tudo tinha que ser garantido no texto, na voz e no corpo. Eu nem tinha referência de atores ou de teatro, nem lembrava de como era um; mas fiquei obstinado para melhorar. Então na manhã seguinte, já na quinta-feira ─ o último período portanto, pois à tarde eu iria me encontrar com o grupo para os detalhes finais ─ eu precisei ensaiar e dar um grau naquela cena. Andei pra lá e pra cá no corredor da casa, e então vi o quarto da minha irmã com a porta aberta. Como de costume seus vinte bichos de pelúcia estavam amontoados sobre a cama. A Clarissa estava em algum estágio e só voltaria à tarde. Tive uma ideia. Juntei as bonecas e os bichos de pelúcia grandinhos, os coloquei sentados lado a lado em cima do colchão, e voilá, agora eu tinha olhos para onde dirigir o meu olhar e o torso enquanto apresentava a cena. Assim foi meu primeiro público: uma plateia de ursinhos que me ajudou a ganhar consciência corporal.
À tarde, mostrei ao grupo o que eu tinha desenvolvido. Uma adorou a ideia, mas não para um TCC; a outra ficou receosa por estar engraçadinho demais; os outros dois deram de ombros porque tínhamos apenas duas horas e, àquela altura do relógio, melhor duvidoso e decorado do que novo e gaguejado. E com essa confiança, além dos sinceros desejos de sorte, fomos para a apresentação definitiva.
O que lembro é que, com exatos vinte minutos de apresentação, o quarto integrante tinha terminado sua parte, portanto eu tinha exatos cinco minutos para cravar o final e assim não diminuir a nota por passagem de tempo. Eu cronometrara em casa a cena com cerca de cinco minutos e vinte, cinco minutos e trinta, e podia confiar que por aquele restinho de alguns segundos não seríamos tão prejudicados. Pensa que, antes da versão criativa, eu estava penando para falar tudo em seis e meio, sete minutos. Fazer em cinco e meio já estava no lucro. Meu desafio era não errar as frases, pois, quando isso acontecia, meu improviso tomava aqueles segundos preciosos para retomar o fio da meada.
Na plateia, além de meus familiares, estavam alguns amigos e a menina por quem eu era apaixonado na época. Chegou minha vez. Respirei fundo, comecei.
Muitas vezes a primeira vez que temos uma exposição pública nos dá tanta adrenalina que sequer lembramos o que houve. Foi o caso. Eu não lembro se tropecei, se esqueci de algo, se errei o timbre, se virei certo, se acertei o tempo da fala. Tenho a memória de um risinho ou outro, mas em especial a do Heraldo ─ o professor redator publicitário que pegava no meu pé e me aconselhava a não me apoiar nas minhas piadas e trocadilhos para provar que era criativo ─ que, sentado na banca avaliadora, colocou a mão na testa escondendo o rosto de forma incrédula (“Não acredito que esse maluco vai tentar algo novo no dia da apresentação”), mas, lá no fundo, esperançosa, pois, afinal, era um showzinho, e todo publicitário gosta.
De repente, tínhamos finalizado. Vinte e cinco minutos cravados. Palmas, e alívio.
Eu também não lembro da banca avaliadora. O efeito “amnésico” da adrenalina dura alguns minutos. Apesar disso, lembro do final da avaliação individual.
“Quando eu falei que faltava um teatrinho, não sabia que você ia levar ao pé da letra. Mas, vejam só, acho que descobrimos um talento”, sorria Ismael.
Um professor já havia me dito que eu sempre gaguejava e colocava a apresentação em risco quando eu seguia o padrão, a linha reta. No entanto, quando me davam liberdade criativa, eu não apenas brilhava, mas entregava um entretenimento, e o melhor: sem custar o tempo, nem palavras esquecidas ou tropeços no roteiro do grupo.
Será que eu tinha de fato aquele talento?
Uma das amigas perguntou ali, nos abraços, se eu era ator. Minha mãe, corujona que era, respondeu que não, mas que “sempre tinha sido criativo na escola”.
Então veio a mãe do Gregor, enfática. “Você faz teatro? Não? Pois devia.”
A geral realmente me congratulou com ênfase na orientação. Até mesmo as colegas mais céticas do grupo reconheceram: “Foi bem melhor que à tarde, acho que você no fundo gosta de palco.”
Não tive muito espaço para pensar a respeito nos dias seguintes porque eu estava mais surfando no alívio de ter concluído a faculdade. Porém, dias depois, uma das amigas presentes na apresentação fez aniversário e, na baladinha, estava aquela menina que eu gostava. Ela, antes do TCC, ainda não sabia se deveria dar bola pra mim, porque, embora eu a tivesse conquistado pelos poemas do blog (ou ao menos convencido que valia sua atenção), minha timidez com mulheres era severa. Mas naquela festinha pós TCC nos beijamos pela primeira vez. E lembro dos olhos dela brilhando quando falou da surpresa que teve ao me ver atuando desengonçado, mas verdadeiro.
Eu tinha acabo de terminar a faculdade. Fiquei as minhas férias ruminando o assunto. “Por que não tentar?”, pensei. No mínimo ia me ajudar a ser menos tímido.
Em resumo, foi por causa de um TCC que eu acabei entrando para os holofotes do teatro.
A Recriarte, uma escola que fica na baixa Vila Madalena, era próxima a um espaço que eu adorava, o Morison Rock Bar. Parecia o lugar perfeito para começar e tentar aquela aventura: bom bairro, perto da minha night, um ônibus direto pra casa, cabia no orçamento, era charmosa nas instalações e fui muito bem atendido pelo Fábio, que depois virou meu amigo.
Em março de 2006 me matriculei no Teatro Básico, um curso que foca em jogos de improviso e consciência corporal. Mas em junho eu já estava estreando uma temporada num teatrinho da Praça Roosevelt com uma turma do curso profissionalizante. E essa história, é claro, é outro capítulo (link aqui).